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segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

VOCÊ NÃO PODE FAZER UMA VISITA PARA ELE

Hoje, enquanto aguardava para fazer uma endoscopia a fim de saber a razão de meus ataques de gases que são uma tortura indescritível, travei conversa com uma senhora que me disse ser professora do segundo grau. Dava aulas de português em um colégio particular da cidade. Durante a conversa ela me disse "vou fazer uma surpresa para ele esta semana". Eu a olhei censuroso e ela percebeu isto em minha expressão. Com um pigarro, ela perguntou o que tinha acontecido. Havia um ar de censura em mim, ou ela estava enganada? Eu lhe respondi que sim, que havia censura, sim. Curiosa, ela perguntou por que isto. Então, pensei um pouco e a questionei do seguinte modo. Professora, a senhora pode fazer um sonho? Quero dizer, a senhora pode dar forma material a um sonho? Ela estranhou a pergunta e, inclinando-se um pouco para a frente, respondeu que não e que minha pergunta era muito estranha. Eu lhe disse que apenas me respondesse e tornei a lhe perguntar. Professora, a senhora sabe definir o que é uma surpresa? Ela pensou um momento e me respondeu que surpresa é quando acontece alguma coisa inesperada por alguém; algo que a pessoa não  está esperando, não está prevenida para receber. Ótimo, eu lhe disse. Agora me responda, de que é constituída a reação de surpresa? Ela pensou um pouco, sempre me olhando com curiosidade. Então, depois de um tempo razoável, respondeu-me que não sabia. No seu modo de entender a surpresa poderia ser constituída de uma visita inesperada; de um presente não aguardado; da perda de alguém... Enfim, no seu modo de compreender, surpresa é constituída por vários acontecimentos repentinos, alguns bons, alguns desagradáveis. Então, eu lhe disse: a senhora está falando pelo senso comum, mas surpresa não é nada disto. Então, com um sorriso divertido na face, ela indagou curiosa: o que é surpresa?

Deixei que ela aguardasse um pouco, antes de lhe responder. E o fiz seguindo o caminho das perguntas que havia traçado para aquela conversa.

- Professora - eu disse,  - a senhora está em casa e recebe de repente a visita de um parente seu a quem muito ama e não via há bastante tempo. Fica surpresa?

- É claro! - ela me respondeu com ênfase. - Acho que qualquer pessoa ficaria surpresa, sim. Por que?

- Descreva, por favor, como é ficar surpresa.

- O que? - seu espanto foi legítimo.

- Diga-me como é que a senhora fica surpresa. O que acontece com a senhora?

- Ora eu... Eu me sinto alegre... excitada... feliz com a visita. Acho até que sou capaz de saltar de alegria. Penso que é isto mesmo.

- Seu coração dispara?

- Acho que o coração de qualquer um que receba de supetão a visita de alguém muito querido vai disparar sim. Por que pergunta isto?

- Então, a surpresa é uma reação emocional que se manifesta fisiologicamente com o coração sendo acelerado e vários hormônios sendo lançado no sangue da pessoa, com especial atenção para as endorfinas, já que a pessoa se sente tomada de alegria, de felicidade. Estou certo?

- Sim, senhor. O senhor está certíssimo. Mas ainda não entendi aonde quer chegar com esta conversa.

- Quero chegar ao fato objetivo de que ninguém pode fazer uma surpresa para alguém, por mais que deseje.

- Não entendi. Realmente, não peguei a coisa. Pode-me explicar? Por que afirma que ninguém pode fazer uma surpresa para alguém?

- Porque não há matéria na qual a pessoa possa moldar uma surpresa com a qual vá presentear a alguém, compreendeu?

- Não.

- Explico de outro modo mais objetivo. Surpresa é uma reação psicafetiva que acontece única e exclusivamente naquele que é surpreendido. Assim como ninguém pode sentir o orgasmo do outro, também assim ninguém pode sentir a surpresa do outro, enquanto reação hormonal em resposta a uma presença inesperada, de alguém. A surpresa é toda dele; exclusivamente dele. Acontece em seu corpo exclusivamente. Ou a senhora acha que não?

Ela pensou um momento e sorriu.

- Verdade, o senhor está com a razão. Eu nunca havia pensado nisto desse modo e acredito que as pessoas não entendem a coisa assim. Agora compreendi porque disse que ninguém pode fazer uma surpresa a alguém. Mas, então, como deveria eu dizer?

- Diga simplesmente vou fazer uma surpresa a ele. Retire a preposição para e a substitua pela preposição "a" ou pela preposição "em". Mas neste caso, no emprego de "em", troque o verbo também. Empregue o verbo "causar" e diga "vou causar uma surpresa nele".

- Agora é que não entendi mesmo - disse ela, cruzando as pernas e me olhando com um brilho nos olhos. - Que diferença faz o emprego desta ou daquela preposição na oração?

- O verbo ir pode ser regido pelas preposições "para" ou "a". Pelo menos era assim que ensinavam as Gramáticas no meu tempo...

- E ainda ensinam do mesmo modo - disse ela, toda interessada.

- Muito bem, então - disse eu rindo. - Nós dois sabemos que quando se diz "vou para" queremos dar a entender que se comunica que se pretende ir para ficar, isto é, para não retornar. Mas quando se diz "vou a" desejamos que se compreenda que se vai e se deseja voltar de onde se foi, não é? Então, se vou fazer uma visita a ele é porque não desejo permanecer fazendo isto ad eternum... Não é mesmo? Mas se afirmamos que vou fazer uma visita para ele estamos dando a entender que o coitado vai ficar em palpos de aranha, pois é minha intenção não retornar mais da tal visita. E é de se perguntar: será que o coitado vai aguentar a surpresa por tanto tempo? Ou será que seu corpo vai terminar sofrendo um colapso por excesso de alegria?

A professora estourou numa gostosa gargalhada e me disse:

- Senhor, hoje eu tive a mais bonita e bizarra aula de português de minha vida. Valeu mesmo. Vou passar a corrigir meus alunos e chamar a atenção deles para o emprego das preposições, de agora em diante. Muito obrigada mesmo. O senhor foi genial.

Eu apenas sorri, mas por dentro orava para que ela assim fizesse. Ao menos uma pessoa estaria estendendo a mão ao nosso velho idioma que está dependurado por um braço sobre o precipício do desaparecimento das línguas dos povos.

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