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sábado, 25 de dezembro de 2010

"VOCÊ FOI MUITO IMPORTANTE EM MINHA VIDA (I)"

Na foto ao lado, muito antiga, acho que de maio de 1970, há 40 anos, portanto, está a mulher que me disse a frase que encima este artigo. A foto foi tirada no Campo de Santanna, bem diante da Central do Brasil. Hoje é dia 24 de dezembro de 2010, véspera do Natal. Fiquei pensativo, depois que desligamos o telefone. Sim, eu realmente fui muito importante em sua vida. Entretanto, ela também foi muito importante para mim. Hoje, digo que nosso tempo juntos foi maravilhoso. Principalmente quando éramos namorados. Fizemos coisas que até Deus duvida... A foto não faz justiça à sua beleza de 18 anos. Era uma pernambucana vistosa, que chamava a atenção dos homens por onde passasse. No entanto, começamos de passo errado. Eu era o selecionador-mór da EMBRATEL, Empresa Brasileira de Telecomunicações S/A.

Uma tarde, quase às 16 horas, um de meus colegas, Hugo Ignácio Stofells, veio até minha mesa. Olhos arregalados, lábios crispados, expressão de censura maliciosa na face, ele me disse: "Tem uma mulher aí pra você entrevistar. Cuidado! Se fosse eu, não a receberia. Parece uma puta..." Fiquei chocado com a expressão de meu companheiro. Ele era gaúcho e tinha sido seminarista por anos. Tinha todo aquele ranço que a Igreja Católica coloca nas pessoas, além de que era racista como o Diabo. Um racismo que nunca entendi, visto que torcia ardorosamente pelo Flamengo e gostava que se babava de deitar com uma "negrinha". Bom, eu pedi que ele trouxesse a moça até minha mesa. Com um bufo de censura, o Hugo foi lá fora e mandou a moça vir até minha mesa. Sim, para os padrões EMBRATEL ela estava totalmente errada. Minissaia curtíssima, mostrando um par de coxas de meter inveja a miss Brasil. Blusa decotada sapatos de saltos alto e bem maquiada. Realmente, ela jamais teria sido recebida por qualquer dois outros três selecionadores. Pedi-lhe que se sentasse na cadeira diante de mim e ignorei suas pernas, quando ela as cruzou naturalmente e sem malícia, diante de mim. Percebi que toda aquela roupa "chamativa" era para fugir de alguma coisa. Olhei-a de frente e notei que ela usava o cabelo cobrindo-lhe a metade da face. Face de lábios cheios em uma boca pequena e muito convidativa. Mas não gostei de estar sendo olhado por um olho só. Então, sem a menor cerimônia, estendi a mão para seus cabelos enquanto falava:"Por que você esconde a metade de seu rosto?" Pegada de surpresa, ela tentou afastar a cabeça, mas não deu tempo. Eu lhe afastei a mecha de cabelo de sobre o olho direito e vi que ele era o motivo dela se vestir daquele modo. Ela era vesga. Eu a olhei nos olhos e lhe disse: "É só porque tem esse olho tortinho que você se envergonha? Ora, você não é esse olho. Você é tudo isso que é seu corpo. Não se esconda de si mesma. Niguém o consegue. Para esconder o olho vesgo você se veste de modo a mostrar todo seu corpo. Resultado: pessoas como o Hugo, preconceituoso, já lhe tacham de "piranha", coisa que eu, tenho certeza, você não é". Pobre menina. Foi posta a nu de modo cruel, mas eu era rude até mesmo devido à tremenda resposabilidade que me pesava sobre os ombros. Ela ficou totalmente desconcertada, gaguejou tentando explicar que não era assim, enquanto eu prosseguia implacável: "Veja, olhe para mim. Sou feio. Sou o cara mais feio que já vi através do espelho. Mas e daí? Não posso mudar isto, portanto, sigo em frente. Afinal, ninguém é totalmente bonito, não é mesmo?Agora, diga: quem a mandou a mim?" Eu acho que ela ficou agradecida porque eu mesmo mudei o rumo daquela conversa. Disse-me que tinha sido o sujeito encarregado da seleção no Banco do Brasil. Ela tinha tentado se inscrever para o concurso do Banco, mas chegara atrasada. Então, o fulano fizera um bilhetinho e a encaminhara a mim. Eu nem sabia que o tal fulano existia, mas não disse nada. Li o bilhete - inócuo - e lhe disse o que era preciso que fizesse. Primeiro, vestir-se de conformidade com as regras da EMBRATEL: saia abaixo dos joelhos, blusa fechada, mas sem manga comprida, discreta somente. Pintura também discreta e penteado "comportado". A empresa era gerida por militares e estes eram bastante preconceituosos quanto ao modo de vestir da juventude da época. Dei-lhe uma ficha de inscrição e pedi-lhe que a preenchesse. Enquanto ela o fazia, na porta da sala, atrás da moça, Hugo fazia sinais desesperados para que eu não desse nenhuma chance à jovem. Com as mãos mandava que eu a dispensasse. Só por isto é que eu teimei em deixar que ela se inscrevesse. Quando ela me entregou a ficha, disse-lhe  que a prova seria dali a um mês e era composta de conhecimentos de Português, Matemática e Datilografia. Nesta última, era preciso que ela desse ao menos 150 toques por minuto, sem erro. Ela gaguejou. Disse-me que era péssima em datilografia. Eu lhe respondi que nisto eu não lhe podia ajudar. Aconselhei-a a que se inscrevesse numa escola de datilografia e tratasse de treinar com afinco, pois a prova era eliminatória.

Máquina IBM
a fita.
As provas eram feitas com os candidatos aprovados em Português e Matémática sentados em uma sala com 30 carteiras (geralmente lotadas), enquanto cinco de cada vez, sentados diante de uma máquina IBM a fita e de costas para os outros, esperavam a ordem de começar a prova. Era duro aguentar aquela tensão e eu, intimamente, não aprovava o local da prova. Mas os militares impunham que a tensão daquela situação fosse considerada como também uma prova de competência, de resistência à tensão. Pensando nisto, eu olhava a moça diante de mim avaliando suas probabilidades. Eram poucas. Dificilmente seria aprovada. Enfim...

Ela se despediu e se foi, e eu tive de aguentar por mais uma hora (o expediente encerrava-se às 17:30h) as críticas do Hugo e de mais dois colegas da sala de seleção de pessoal. No dia seguinte, quase às 17h, chega novamente o Hugo com aqueles olhos azuis arregalados e aquela expressão de repulsa na face: "A piranha está lá em baixo querendo falar contigo. Bem feito! Agora, tu estás enrascado com o Coronel Diderot. Assim que ele souber que tu andas te envolvendo com aquela "coisa", tu vais-te enrascar". O Hugo, com toda a certeza, não me conhecia. Se ele não tivesse feito esta observação tão mesquinha e preconceituosa, eu talvez tivesse dispensado a jovem. Mas quer-me ver teimoso como uma mula, é falar comigo deste modo. Então, mandei pedir que ela me aguardasse. Quando o expediente acabou, desci e dei de cara com a jovem ainda vestida de modo pouco adequado para os padrões da EMBRATEL. Isto me contrariou. Aquela saia curtíssima não a recomendava e, de certo modo, o Hugo estava com a razão. Todos os que estavam saindo olhavam com espanto para a mulher esfuziante que sorria toda alegre para mim. "Ela não faz idéia, mas está-me pondo em risco, e grave". Sim, eu era o homem que elaborava os testes de Português e Matemática. Além disto, era quem os aplicava, corrigia e fazia a relação dos aprovados, rigorosamente por ordem decrescente de nota. Era terminantemente proibido de namorar com candidatas. Até mesmo sair da empresa acompanhado por uma era me colocar em risco de ser recolhido ao SNI, coisa temida até pelo Diabo. Para complicar a história, eu era casado e minha esposa era  uma das secretárias da diretoria. Isto complicava demais aquele encontro bem diante da porta da EMBRATEL. Graças a Deus um de meus colegas de seleção (lamentavelmente não mais me recordo de seu nome) percebeu meu apuro e foi ele quem se adiantou e não somente estendeu a mão para a jovem, mas também a abraçou efusivamente, como se já a conhecesse há tempos. Então, sussurou-lhe ao ouvido que ela não devia andar ao meu lado. Ele ficaria entre nós e devíamos caminhar naturalmente, ao longo a Presidente Vargas, em direção à Candelária. Só quando entrássemos pela Avenida Rio Branco é que ela poderia falar comigo, mas devia fazer isto discretamente. Ele continuaria entre nós, fingindo que era seu amigo. Enquanto caminhávamos, ele explicava porque tínhamos de agir assim e lhe dizia o quanto ela me havia colocado em perigo. Sem graça por ter cometido inadvertidamente e por ignorância aquela imprudência, ela se dispôs a ir na companhia de meu amigo, enquanto eu retornava à EMBRATEL para, dali, tomar meu destino. A jovem não conseguiu dizer-me o que desejava.
No dia seguinte só se falava da "candidata do Brito" e a fofoca chegou aos ouvidos do Superintendente de Administração, que me chamou às falas. O Coronel Diderot era um cearense grande, forte, espadaúdo, que se impunha só pela presença. Nunca falava alto. Tinha voz de barítono e sempre pedia por favor e dizia muito obrigado, quando era atendido. Eu gostava muito dele e ele de mim. Quando me sentei à frente de sua mesa, ele me olhou com o semblante sereno e me relatou com voz serena o que ouvira sobre "a candidata do Brito". Então, com os olhos nos meus fez a pergunta: "Você está de namorico com essa candidata?" Eu conhecia muito bem o Coronel - e os coronéis de modo geral -, para saber que aquela suavidade escondia a peçonha da víbora. Contei-lhe como tudo tinha acontecido, sem omitir nenhum detalhe. Diderot me conhecia o suficiente para saber que eu lhe dizia a verdade. Então, quando terminei de falar, ele me disse: "Muito bem. Vou à Diretoria explicar a situação ao Diretor de Administração. Ele é que está incomodado com os boatos. Até porque sua esposa é secretária dele, compreende? Você sabe bem o que ele pode mandar fazer se achar que você quebrou uma regra pétrea da EMPRESA". Eu me retirei da entrevista, raivoso. Sempre detestei visceralmente ser ameaçado. Eu era honesto no que fazia. Tanto que tinha sido praticamente arrastado para trabalhar na EMBRATEL justamente por esta minha qualidade. Não digeria bem uma ameçava velada sobre minha cabeça. Eu e os militares, desde meu tempo de caserna, não nos dávamos bem. Nunca digeri o modo como eles se comportavam com os que julgavam seus subalternos. Nunca me considerei subalterno de ninguém e sempre deixei isto bem claro, quando surgia um conflito. E estes eram muitos, devido mesmo à minha rebeldia.
Mais ou menos às 14 horas, o Hugo atendeu a um telefonema. Sua expressão de raiva logo me disse de quem se tratava. "Brito, é ela! Tu vais atender?" Fui seco: "Passa o telefonema para mim". Com toda má vontade e expressando bem sua censura, ele obedeceu. Era a bela e inexperiente jovem. Ela me pediu desculpas pelo seu comportamento do dia anterior e me pediu que a encontrasse no Edifício Avenida Central, na Avenida Rio Branco, diante da Agência da Luffthansa. Não entendi o nome da tal agência. Repeti o nome do edifício, de olho no Hugo, e vi que ele tinha anotado algo num pedaço de papel. A fim de não prolongar aquela conversa comprometedora, disse que iria ao encontro e desliguei. Passei o resto do dia observando o Hugo, cujo comportamento era altamente incriminador. Quando o dia terminou, notei que o gaúcho tinha desaparecido da sala. Havia saído uns três minutos antes de mim. Bati meu ponto e fui direto para a Rio Branco, mas ia observando até uma formiga que andasse pela Presidente Vargas até seu entrocamento com a Rio Branco. Desci pela Rio Branco, a pé, uma caminhada respeitável, sempre observando os transeuntes. E foi quando descobri o Hugo. Tinha trocado de camisa e andava do outro lado da avenida, de olho em mim. Eu o vi através da vidraça de uma loja, diante da qual havia parado aparentemente interessado em seu mostruário. Fizera isto com várias vitrines, o que me fez atrasar bastante o tal encontro. Ri, intimamente divertido. Então, a passos firmes, avancei até o Edifício Avenida Central, onde, sem hesitar, subi pela escada rolante até o segundo andar, onde havia um restaurante. Sentei-me numa mesa de onde podia observar sem ser visto a escada rolante. E eis que surge o Hugo olhando para todo lado, à minha procura. Levantei-me e fui sentar em outra mesa, do lado de fora do restaurante, na grande área livre do edifício. De lá, mantive o controle das andanças do Hugo, atarantando com meu desaparecimento. Então, quando ele se afastou para o outro lado, desci rápido e atravessei a Avenida. Permaneci na calçada do outro lado, esperando que o Gaúcho aparecesse. Demorou mais ou menos uns vinte minutos, e eis que ele surge no alto da escada rolante. Deixei que chegasse à calçada e, então, atravessei novamente a Avenida e fui direto para ele. Cumprimentei-o por detrás, o que o fez quase saltar de susto. "E aí, Hugo, o que tu estás fazendo por aqui?"  Totalmente surpreso, gaguejando e nervoso, ele me respondeu: "Eu?De onde...? Cadê ela?" Com a maior "inocência" na face, eu lhe perguntei a que "ela" ele se referia. O "gringo" (na verade, era filho de alemães) se atrapalhou. Então, propositadamente malicioso, eu exclamei:"Ah! Entendi!Tu estás aqui para te encontrares com a candidata "piranha"... Que coisa, Hugo! Como é que pode! E me jogas aos leões, lá na empresa!" O coitado não sabia o que dizer. Atrapalhou-se e foi direto: "Eu, não. Tu é que vieste te encontrar com ela. Eu ouvi quando tu e ela marcaram encontro aqui". Eu o fitei sério e com expressão de raiva: "Cuidado, grigo. Tu não tens prova disto e eu posso muito bem contar ao Diderot o que estás fazendo. Vais ser demitido e por justa causa. Eu sou o sub-chefe da seção, não te esqueças! Além disto, onde está a tal candidata? Se eu vim-me encontrar com ela, por que ela não está aqui? Posso muito bem achar que tu foste quem veio pra cá com essa intenção. Vamos, onde está a moça?" Desesperado, o Hugo olhou para todos os lados e se voltando para mim, disse, avermelhado até à raiz dos cabelos: "Eu não sei. Quem veio ao encontro dela, foste tu!" Dei-lhe aquela bronca e ameacei levá-lo diante do Diderot. Todos, na empresa, sabiam que eu era "o peixinho do Superintendente" e que este não gostava muito do Hugo. Logo, se eu contasse a ele uma história sobre o "gringo", mostrando que este cara estava tentando me incriminar para esconder suas intenções, claro que o Coronel ia acreditar em mim e sobraria, com certeza, para o meu bisbilhoteiro e fofoqueiro colega. Amarelo, o Hugo prometeu me deixar em paz e não mais falar mal da jovem moça. Obriguei-o a me prometer, também, não mais se referir a ela como "a piranha". Ela tinha nome e ele, daquele dia em diante, falaria dela mencionando-lhe o nome.
A história não parou por ali...

2 comentários:

  1. Paizinho, eu amei. Quero saber de toda a história de vcs. Vai virar livro... rsrs. Vou guardar com muito carinho para mostrar aos meus filhos a origem da mãe deles. Deliciei-me com cada palavra. Visto que não tive vcs dois juntos, sorverei cada palavra com grande emoção! Será o presente mais abençoado de toda a minha vida e talvez assim preencha a lacuna que existe em mim...

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  2. Filha, toda a história daria realmente um lindo livro de amor, mas não dá para escrever tudo aqui. Entretanto, tomei a decisão de contar muito de minha vida com sua mãe porque, um dia você me pediu que a encontrasse no Barrashopping. Quando nos sentamos à mesa, você me pediu: "Pai, quero que fale de você. Quem é Você? Quem é este homem que eu desconheço?" Bom, aos pouquinhos você irá conhecendo quem é o homem que se tornou seu pai. Um beijo carinhoso. Orisval

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