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terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

NARCISISMO, O QUE É ISSO?


É comum ouvir-se dizer por aí: Fulana(o) é narcisista. Mas geralmente quem o diz não faz idéia do que vem a ser isto. Os velhos gregos, cuja sabedoria não é suplantada até hoje, tinham uma lenda que foi aproveitada por Sigmund Freud para explicar alguma coisa sobre a complexa estrutura de nossa Identidade. Reza a lenda grega que uma ninfa da Beócia, Liríope, estuprada pelo rio Cefiso deu à luz um belíssimo garoto. Impressionada com aquela criança tão bela, a ninfa consultou Tirésias, o cego vidente e adivinho que lhe disse: “Esta criança terá vida longa, desde que jamais veja a si mesma”. Liríope não entendeu aquelas palavras e consultou vários outros adivinhos, mas nenhum decifrou o seu enigma.
 
Narciso cresceu tomado por uma beleza ímpar. Tinha corpo perfeito, como o de um Deus do Olimpo. Tinha o mais lindo rosto que se possa imaginar e seus cabelos eram como fios de ouro. Apaixonava por si todas as ninfas que encontrava em seu caminho, mas ignorava-as, entretido com os jogos de caça, dos quais gostava muito. Um dia, quando o sol quente tornava o ar pesado e a luz brilhante cegava os olhos, Narciso deixou-se deitar sob uma grande árvore à margem de um lago. A sede sobreveio e ele se encaminhou até um lago de águas cristalinas e de superfície serena e reflexiva como um espelho. O jovem debruçou-se sobre aquelas águas com as mãos em concha para colher um pouco e levar à boca sedenta. E foi quando se viu refletido ali. Ficou extasiado com aquele reflexo de si. Era demasiado lindo para ser ignorado. Narciso permaneceu às margens do lago, apaixonado pela sua própria imagem. E sofria por isto, pois tentava e tentava tocá-la, mas tão logo suas mãos mergulhavam na água, a imagem tremeluzia e desaparecia para só retornar quando ele retirava, frustrado, as mãos dali de dentro. Uma versão desta lenda diz que ele definhou e morreu de fome às margens do lago. Mas ainda assim, seu espírito não sossegou. Mesmo no Hades, sofria mirando-se nas águas do rio Estige, perdidamente apaixonado por si mesmo. Outra versão conta que ele caiu no lago e ali morreu afogado. De qualquer forma, ele foi parar no Hades e terminou eternamente à margem do Estige sofrendo aquela eterna paixão irrealizável.
Freud aproveitou esta lenda para definir uma reação natural da Natureza quer animal, quer humana. Observe uma criança de dois aninhos — ou um pouco menos —, sentada diante de uma porção de brinquedos. Se outra criança se aproxima, a primeira rapidamente estende os braços e puxa para perto de si todos os brinquedos, olhando com raiva para o intruso e exclamando: “Não!” Observe um gato comendo. Se outro gato se aproxima, o primeiro estende as patas em torno da comida e rosna ameaçadoramente. A mesma reação tem um cão. Tanto no exemplar humano quanto nos exemplares animais vemos uma reação tipicamente narcisista. Esta reação é inerente a todas as formas de vida animal, nos animais superiores. O narcisista é o centro do Universo. Do seu Universo, é claro. Mas para ele só existe este Universo e nenhum outro. Nele, o narcisista é tudo e tudo existe para satisfazê-lo e adorá-lo. Tudo lhe pertence. É como se dissesse ao mundo: ”Eu sou o melhor! Eu sou perfeito! Todos me devem servir; todos me devem adorar; todos devem viver para satisfazer meus desejos, pois eu sou o melhor que há na face da Terra e possuo tudo”. Este exemplo, embora real e observável em qualquer lugar onde haja crianças pequenas brincando ou animaizinhos comendo, é primário. Na vida mais complexa do adulto o narcisismo se manifesta constantemente sem que a pessoa se dê conta disto. Você, por exemplo. Você é homem e se depara com o retrato de um artista famoso de cinema ou televisão. Em sua fantasia perpassa por um momento a inveja do sucesso daquela personagem e você momentaneamente se torna ele. E fantasia que tem tudo, do carrão à mansão passando pela conta recheada no banco, e possui todas as garotas que deseja... Você está vivendo um momento de seu narcisismo e não se dá conta disto.
As mulheres são mais suscetíveis a estes momentos narcísicos, pois são mimadas pela Mídia e pelos homens, desde seu pai até seus namorados. Este comportamento socialmente padronizado não somente incentiva, mas mantém o narcisismo feminino em pleno funcionamento. Veja, nas novelas da TV Globo a trama sempre gira ao redor do narcisismo feminino (e, agora, também do narcisismo “gay”). Nos filmes que seguem o script norte-americano, onde os mocinhos "quadritesticulares” superam tudo e arrostam todos os perigos impossíveis, o narcisismo masculino salta da tela do cinema ou da telinha da TV e invade todo o ambiente. Observe que os homens, quando saem das salas onde foram exibidos filmes de Bruce Lee, Jet Lee e todos os demais Lee do planeta, mudam por algum tempo a postura de seus corpos. Seus modos de andar; a posição dos braços; o peito dilatado, tudo reflete a identificação narcisista com o mocinho fictício mostrado na tela. Suas companheiras, se eles estão acompanhados, demonstram um desprezo claro para com as peripécies do testiculoso mocinho. Elas não podem suportar o narcisismo de seus companheiros, pois isto inibe o Universo íntimo de cada uma, Universo no qual eles devem adorá-la e a nada mais. Entretanto, naqueles momentos, os homens sofrem uma regressão psicológica e voltam a ser criança quando, então, o egoísmo se torna exacerbado e a auto-estima lhe segue os passos bem de perto. Acontece a mesma coisa com os shows das divas do teatro ou da música. As mulheres procuram ansiosamente identificarem-se com elas. Elas são seus modelos narcisistícos. E também são seus modelos as divas das passarelas. Todas estas personagens estimulam o Narciso oculto no fundo do Ser de cada pessoa, homem ou mulher, sobre a Terra. Todos os apelos do Mercado se voltam exatamente para despertar e manter ativo o Narciso em todos nós. Você já deve ter visto a propaganda do Citröen C3. Um jovem comum pára seu Citröen junto a um aglomerado de rapazes, onde uma moça está presente. Os outros rapazes que flanam ao redor da moça e que não possuem um Citröen C3, são agrupados em um cubo de plástico ou qualquer coisa transparente, são diminuídos e jogados em um cesto de lixo, enquanto a jovem, sorrindo maliciosa e vitoriosamente, dá o braço ao dono do Citröen e sai toda faceira levando o cara dependurado nela (ou será que é o vice-versa?). Este anúncio é veiculado constantemente na Televisão. Olho para ele e fico pensando: “Foi o dono do Citröen que humilhou e jogou os demais no lixo, ganhando a mulher, ou foi a esperta mulher que jogou os outros no lixo e ganhou o bobão com a intenção de se apoderar do carrão?” A mensagem subliminar do anúncio não dá para saber quem ganhou quem: o rapaz, com os testículos sempre cheios e prontos para a descarga, ou a moça, sempre disposta a levar vantagem em tudo, comportando-se sensualmente e oferecendo o que talvez não esteja disposta a dar? Uma coisa é certa: Narciso ganhou dos dois. E o Mercado com certeza está ganhando de todos...
Sátira à parte, o processo complexo e subliminar, quase nunca notado pelas pessoas, está a todo momento ocorrendo com todos nós, sejamos ou não psicólogos ou psicanalistas, sejamos ou não um objeto de consumo fabricado pelo Mercado. Mas o esperto imaginador da Psicanálise foi adiante. Freud chamou de libido à atração sensual com vistas à cópula e ao orgasmo. Então, também somos todos libidinosos. Ora, a Sociedade impõe comportamentos que inibem a plena manifestação de nossa libido. Se não fosse esta “castração libidinal”, o mundo seria uma loucura. Gemidos de gozo por todo lado, a qualquer hora; e casais se atracando furiosamente nas calçadas, nas lojas, nos cinemas, nas empresas... Mas tais cerceamentos sociais (e religiosos também) não impedem que a libido esteja perenemente tentando se realizar objetivamente, pois ela é uma energia enraizada organicamente, com direção e sentido bem definidos. Uma vez que não pode se expressar livremente, ela é retirada do mundo real e voltada para o interior da pessoa. Imagine um riacho que de repente tem seu curso impedido por uma pedra. Ele logo encontra novo rumo para suas águas e elas seguem impetuosamente seu caminho, nem que para tanto tenha de arrastar o que encontrar pela frente. Bom, isto é a libido. As águas do riacho são a libido. O leito do riacho são os “caminhos” psicossomáticos que conduzem a libido do indivíduo à sua consumação. Este “leito” é seu corpo; é você; é sua imaginação. É seu psiquismo e todo o complexo sistema que ali se desenvolve, onde sensação, percepção, cognição, memória, pensamento, associação de idéias etc... estão-se processando a uma velocidade alucinante. Um sistema ativíssimo do qual você, nem ninguém, tem a menor consciência.
Narcisismo + libido unidos constituem aquilo que o vulgo chama de “amor”. Chato, né? O “amor” visto assim, perde a graça. No entanto, Freud estava certo. Agora, veja bem: o narcisismo faz que a pessoa se perceba o centro do mundo, enquanto a libido faz que deseje um(a) parceiro(a) para dar vazão, de uma maneira “socialmente” aprovada, à sua energia sexual reprimida pelas regras sociais. Então, você já percebe que essa fórmula não vai dar boa coisa, não. Por que? Porque o narcisismo é a base de sustentação do ciúme e este é o cupim que destrói o castelo ilusório do “amor”. Já dá para compreender a razão de as paixões dos jovens serem tão “devastadoras”. O casal jovem alimenta mutuamente tanto o narcisismo de seu par quanto sua libido. Cada um exige ser o centro do universo para o outro; cada um quer ter o outro somente para si; cada um se acha a mais bela jóia do mundo e exige que o outro se mantenha constantemente afirmando isto em palavras e comportamentos. Só assim o seu Narciso interior fica sossegado; cada um está com sua libido à toda, literalmente pegando fogo; esta situação libidinal bloqueia a razão e toda e qualquer argumentação que possa assemelhar-se à castração ao desejo impetuoso de se entregar e possuir simultaneamente. Veja você que o “amor” narcísico-libidinoso é um inferno. Uma verdadeira fera acuada no ser do apaixonado. É aí que entra a educação repressiva social que, através de rituais criados para frear a avassaladora onda “amorosa”, mantém o “fogo” libidinal sob rédeas curtas.
Agora, vamos voltar à lenda de Narciso e ver a outra versão. Nesta, Narciso apaixonado por si mesmo, descuidou-se, caiu dentro do lago e morreu afogado. O lago, que era de água doce, transformou-se em um lago de lágrima. Um dia, as Oreiades — as deusas dos bosques — vieram ao lago e ficaram admiradas com aquela transformação. Intrigadas, perguntaram-lhe a razão daquilo. Ele respondeu que chorava por Narciso. As Oreiades, então, disseram não se espantar com isto, pois Narciso fora perseguido por elas durante toda sua vida, graças à maravilhosa beleza de que era portador. Infelizmente, ele nunca se interessara por nenhuma. Confessaram que sentiam inveja do lago, pois ele era o único que podia ver o dia inteiro a beleza de Narciso. O lago ficou pensativo por um momento e, então, perguntou? ”E Narciso era belo?” Admiradas com esta pergunta, as Oreiades responderam que ele devia saber, pois era o único que olhava a face de Narciso o dia inteiro. Mas o lago lhes respondeu: “Sim, eu choro por Narciso porque eu o tinha aqui, às minhas margens, o dia todo. Mas jamais havia percebido que ele era bonito, pois quando ele se deitava sobre minhas águas eu podia ver, embevecido, no fundo de seus olhos, minha própria beleza refletida ali”.
Reflita no que diz esta versão. O lago não viu a beleza de Narciso porque o que desejava era se ver através dos olhos dele. É isto o que acontece com os “apaixonados”. Ele procura se ver através dela e ela, através dele. Nenhum enxerga o outro. E isto não é simbolismo, não. É verdade nua e crua. Há uma relação simbiótica entre os pares do casal de enamorados.
Você sabe o que é simbiose? Sim, é a transação que faz uma determinada trepadeira, chamada impropriamente de parasita, que troca nutrientes com a árvore em que se hospeda. Entre os enamorados, há uma troca de “alimentos” narcisísticos, por isto a relação é simbiótica. As delicadezas e atenções dele dizem a ela o quanto ela é delicada e atenciosa com ele e vice-versa. E cada um ama no outro o si mesmo que nele enxerga. Nenhum dos pares do casal realmente vê o outro; nem sente as necessidades do outro; também não procura realmente o bem-estar do outro. O que busca no outro é se ver; é sentir que suas próprias necessidades e carências estão sendo satisfeitas; é sentir que sua necessidade de bem-estar está sendo atendida plenamente. Se alguma destas percepções não corresponde às expectativas do par enamorado, “o diabo sai da garrafa”. As brigas, os desencontros, as cobranças, os insultos e as ofensas são inevitáveis. E se um dos pares tem conflitos emocionais não resolvidos com seus pais — ou com um deles — este conflito vai direto interferir no relacionamento. Aí, o carro da felicidade atola de verdade. Se eu vejo no outro a mim mesmo, também vejo nele meus conflitos e minhas frustrações. Elas não foram causadas pelo meu par. Ele até pode nem ter conhecimento de que eu os trago em mim como uma cascavel enrodilhada e pronta para o bote. Mas isto não impede que no espelho narcísico — o lago — que meu par é para mim aquele conflito, aquela frustração, aquela raiva reprimida não seja também vista e sentida. Se eu me admiro como a perfeição que não tem defeitos; que é merecedora de toda admiração e de toda servilidade, ver aquela “cobra” peçonhenta no meu reflexo é inaceitável. Ela pertence ao meu par, não a mim, não ao meu reflexo.
Isto é o que o ser humano civilizado moderno entende por “amor”. É este drama trágico, como trágicas são as fábulas míticas dos gregos, que embasa o relacionamento entre enamorados que terminam gerando uma família. No fundo, a família não é o objetivo. Os filhos, por mais cantados como desejados, não o são verdadeiramente. São acidentes de percurso, só isto. Pode parecer chocante o que a Psicanálise afirma, mas ela é a ciência da doença por Natureza. Aos seus olhos, todos somos psicopatas. A normalidade é utopia. O diabo é que no dia-a-dia de cada um é possível verificar que suas hipóteses podem ser observadas ou, ao menos, desconfiadas por indícios bastante significantes. E Freud foi buscar nos gregos, em sua Mitologia, a base para a ciência que criou. E é do conhecimento da maioria das pessoas mais ou menos instruídas, mais ou menos informadas, que a Mitologia Grega no fundo se refere aos dramas que realmente acontecem no nosso íntimo. Para derrubar o Freud é preciso, antes, derrubar os gregos e a briga, neste terreno, é braba. Eles foram os maiores guerreiros de seu tempo e vão resistir bravamente ao ataque ao seu panteão sagrado. Agora, apreenda o que há no que escrevo, de modo profundo; apreenda, capture o conteúdo deste artigo sem ter dúvidas, sem ter resistência a este ensinamento psicanalítico e, depois, observe atentamente as relações interpessoais e entre entidades comerciais e seu público. Vai ficar arrepiado ao verificar que o danado do Freud estava certo. Você não precisa ir às livrarias comprar vetustos livros enciclopédicos escritos por psicanalistas posudos e titulados que dão nó em pingo d’água para conseguir plasmar no papel suas idéias, não. Flane pela internet, assim como quem não quer nada querendo, e verifique alguns artigos sobre NARCISISMO. Há muita coisa boa inserida na dimensão virtual da internet. Você vai concordar comigo, ao final das contas.
Bom, falei sobre o relacionamento “amoroso” entre jovens enamorados. Agora, vou falar do relacionamento entre casados. Aqui, o bicho pode pegar para valer. E vai pegar quando a mulher engravida. Até chegar a este ponto, ela tem seu parceiro como aquele lago maravilhoso onde seu EU se mira embevecido de si mesmo e apaixonado por si mesmo. A mulher faz pelo marido tudo o que acha que é bom porque precisa que ele, enquanto lago, lhe dê de volta um reflexo deslumbrante de sua beleza mesma; faz todos os sacrifícios por ele, assim como Narciso fazia pelo seu lago, porque a felicidade que o parceiro reflete é a felicidade dela, a felicidade de poder realizar coisas tão maravilhosas, que reforçam em seu EU a certeza de que este EU é belíssimo; a mulher abandona tudo por seu marido – família, pais, irmãos... e até muda de cidade ou de estado para acompanhar seu homem, assim como Narciso abandou tudo pelo seu lago. Ela faz isto porque aquele parceiro (o marido) é o lago onde o seu Narciso interior se olha embevecido de sua própria beleza. A mulher precisa daquele "lago" para poder viver bem consigo mesma. E o seu par, seu homem, também age do mesmo modo. Nenhum está realmente vendo e sentindo o outro. Vê a si mesmo; adora a si mesmo. Enquanto aquele lago ali estiver e reflita a imagem maravilhosa que o Narciso interior (EU) de cada qual precisa desesperadamente ter à disposição, tudo vai às mil maravilhas. É o céu na terra. E todos, ao verem a “felicidade” do casal, ficam com inveja numa intensidade diretamente proporcional ao fracasso que teve com seu próprio lago.
E eis que surge a gravidez.
Quando engravida, a mulher passa por uma etapa que seu “lago” não conhecerá jamais. Ela regride ao estágio em que também já foi criança. Claro que não é a pessoa social que anda, trabalha, estuda e interage como se fosse normal, não. Quem regride é a psique da mulher grávida. É necessário que isto aconteça para que ela se aceite como uma Quasimodo, um “aleijão” devido mesmo à barrigona, ao inchaço das pernas e à gordura extra que seu corpo acumula. Ela e a criança em gestação dentro de si precisam compor uma unidade. O Narciso da mulher é também o Narciso em formação dentro daquele corpo. Só assim o Narciso da mulher aceitará aquele intrometido dentro do corpo que lhe pertence. Os dois precisam ser um só. Por isto, a mulher grávida renuncia a seus interesses habituais e passa a compor com seu bebê uma unidade autônoma, quase totalmente isolada do mundo. O Narciso dela apropriou-se daquele outro em formação. Agora, ele continua sendo tudo e, por isto, continua se vendo lindo. O parceiro, o “lago” onde o Narciso da mulher se reflete e se vê e se admira, precisa, agora, desmanchar-se em gentilezas, em atenções e em cuidados totais, pois o Narciso da grávida sempre estará incomodado com aqueloutro que cresce e avança no terreno corporal que sempre lhe pertenceu. Mas... Lembra-se do que eu disse linhas acima? Sobre o Narciso enxergar no seu “lago” aquela cobra cascavel (que são os conflitos não solucionados da mulher com seus pais) pronta para o bote? Pois é. Aquela cascavel pode de repente se fazer presente naquele Narciso intrometido no ventre da mulher. Ih! Complicou. Agora, o Narciso da mulher não pode mais se enxergar como perfeito. Há um terrível defeito dentro de si. E como, sendo Narciso, ele não pode admitir em si mesmo feiúra de espécie alguma, de imediato atribui aquela desgraceira ao seu “lago”, ao seu “espelho”. E começa um verdadeiro inferno na relação marido-mulher. Ela se toma de uma crise de ciúmes doentios, absurdos, que ele não consegue compreender. Fica chorosa, fica agressiva e se nega terminantemente a ser tocada por ele. A vida marital vira um inferno. O Narciso da mulher grávida, picado pela cobra que ela carrega no ventre (isto é simbólico, gente), reage com fúria. Aquela cobra o fez se ver feio. Isto é intolerável, é absurdo e é repugnante. O Narciso da mulher quer de volta sua beleza perdida e trata de cobrar de seu “lago”, com toda a raiva de um ente divino (que é implacável), que lhe devolva o que lhe tirou, colocando dentro daquele corpo um intrometido intolerável. A cópula azeda. O ambiente sempre primaveril que existia entre eles passa repentinamente a ser um inverno tempestuoso e cheio de violentas nevascas. E para complicar, o Narciso dele se perde no lago que é ela. Não mais se consegue ver belo. Isto também o enfurece. Aí, a vaca marital vai pro brejo de vez. Aconteceu o famoso “break dawn psicótico” da mulher grávida. Se o casal não contar com ajuda profissional de um competente psicoterapeuta, a união acaba ali. E os pares do casal devem dar graças a Deus se ela terminar sem que ocorra um drama digno das tragédias gregas, com morte e tudo.
A mulher em “break dawn psicótico” se recusa ao marido, que vê como seu pai. O contato com ele é, então, incesto e é absolutamente inaceitável para seu psiquismo, mormente se ela teve uma educação religiosa marcante, forte. Entretanto, seu Narciso interior não pode nem deseja perder aquele “lago” a que se acostumou. Ele deseja o impossível: que tudo retorne ao início, quando não havia um intrometido dentro do corpo da mulher, carregando em si aquela cobra horrorosa. Ele não quer aquela cobra. Ela tem de sumir de vez e para sempre. Mas isto é impossível, pois a cobra é da mulher, logo, é dele. Então, entra em ação uma defesa psicológica conhecida entre os psicanalistas como projeção. O Narciso da mulher projeta no “lago” que é o marido, aquela víbora peçonhenta e passa a odiá-la nele. Parece complicado, mas se você fizer um pequeno esforço vai entender o que estou dizendo. É como se você detestasse uma mancha em sua pele e pudesse retirá-la de si e lançá-la em sua mãe. Então, passasse a atacar sua mãe porque ela está com aquela mancha detestada. Entendeu?
Muitos casamentos fracassam logo depois que a mulher engravida. Ela muda radicalmente seu comportamento e se torna tanto mais terrível para o marido quanto maior seja a intensidade do conflito psicafetivo que carrega consigo em relação às figuras parentais “internalizadas”.
O chato da psicanálise é que a gente tropeça a todo instante com termos que não têm significado em nosso vocabulário. E aí, precisamos saber o que eles querem dizer. Internalizar, por exemplo. Na psicanálise o processo de internalização, em rápidas palavras, significa a incorporação inconsciente à “Personalidade” do indivíduo de padrões, idéias, atitudes, práticas ou valores e crenças de outras pessoas ou de um segmento de sociedade onde a pessoa vive. O que é internalizado passa a constituir parte quase indissociável da Personalidade da pessoa. As figuras de nossos pais são objetos internalizados por nós e que por toda a vida continuarão a existir dentro de nosso ser, dentro de nossa “Personalidade”, nossa Identidade mesma. Assim, os conflitos que uma pessoa tem com suas figuras parentais internalizadas constituem seus transtornos ou suas neuroses. São aquela “cobra cascavel” de que falei linhas acima e que o Narciso interno da pessoa não aceita de modo algum.
Bom, creio que lhe dei muita informação, ainda que de modo superficial e descompromissado, para que repense seus relacionamentos, sua vida mesma e todos os seus processos afetivos. Procure entender bem esta história de Narcisismo e de libido e verá como estamos atolados até os cabelos neste pântano psicafetivo. Muitos dramas amargos; muitas vidas estragadas, esfaceladas no caminho da vida, têm suas raízes neste pântano que, infelizmente, é inevitável.
NAMASTÊ!

Um comentário:

  1. Muito bom o artigo. Embora possa parecer pessimista, creio que se usado como exemplo para aqueles como eu que "enamoram" ou ja sao "casados" possam tentar ao menos entender quanta coisa esta em jogo dentro de nossas mentes intuitivamente narcisistas e anormais. Creio que somente conhecendo o mal poderemos entao tentar entender o bem e optarmos por qual caminho seguir.

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